Gale Ann Hurd: "Porque é que tudo é woke ou é MAGA?"

Exterminador Implacável, Aliens: O Recontro Final, Armageddon, The Walking Dead. São alguns dos maiores sucessos de massas do audiovisual norte-americano nas últimas quatro décadas. Ação, aventura, ficção científica, formam parte de uma espécie de “cânone”, cinema e televisão de géneros pretensamente “masculinos”, feitos de e para homens. Podia até ser verdade, não fossem os títulos mencionados terem todos em comum a mesma voz de comando a estilhaçar o estereótipo, uma verdadeira “mulher do leme”: a produtora Gale Anne Hurd.
“Muitas pessoas, sobretudo jornalistas, erram nessa ideia dos ‘filmes de homens’. Não faço ideia de onde é que isso vem”, diz ao Observador. Firme, coloca os pontos nos is. Diz que é uma característica que teve de desenvolver ao longo dos anos de trabalho na notoriamente competitiva (e sexista) indústria de Hollywood. “Os estudos indicam que mais de 50% do público de filmes de terror são mulheres e, no entanto, há esta perceção de que as mulheres não gostam de terror. Se um casal heterossexual for ver um filme, a decisão normalmente é da mulher. O público feminino é muito, muito importante, os dados refletem-no”.
O terror, e o papel da mulher nele, é justamente o que traz Gale Anne Hurd a Portugal, onde será homenageada pelo MOTELX — Festival Internacional de Cinema de Terror de Lisboa com a primeira edição do Prémio Noémia Delgado. Durante o festival, com epicentro no Cinema São Jorge de 9 a 15 de setembro, dará ainda uma masterclass sobre a sua carreira, um percurso de desafio às convenções e normas daquilo que se dizia serem os filmes de interesse do “grande público” – e de quem estaria apto a produzi-los.
Nome até aqui esquecido do Novo Cinema Português, a cineasta que inspira o prémio teve, contudo, um percurso importante na cinematografia nacional. Como montadora, assinou dois filmes marcantes do período, Mudar de Vida (1966), de Paulo Rocha, e O Passado e o Presente (1971), de Manoel de Oliveira. Como realizadora, praticou o documentário e a ficção, adotando técnicas da antropologia visual mas também do cinema fantástico, adaptando Eça de Queirós, Júlio Dinis e Mário de Sá-Carneiro, entre outros. Mortos-vivos, sereias, bruxas e demónios foram parte fundamental do seu imaginário fílmico.
“Quando trabalhamos com alguém tão brilhante como o Jim Cameron, a nossa contribuição resume-se a darmos notas e ajudar a ideia a florescer. De resto, com alguém tão talentoso como o Jim, é sair da frente e deixá-lo fazer o que sabe. Mas poucos o são.”
Gale Anne Hurd fez o trabalho de casa antes de aceitar a honraria e encontra em Delgado um laço de parentesco. “Sei que a Noémia foi uma mulher pioneira, envolvida em muitos tipos de filmes diferentes, não só no género do terror. Fez documentário, que é algo com o qual me identifico, porque também produzo muitos documentários, gosto de contar histórias que acho que precisam de ser contadas”. Acima de tudo, para a norte-americana, de 69 anos, premiações deste tipo servem para destacar uma história que sempre esteve escrita. Apenas à espera de alguém que as contasse. “Acho que estes prémios são importantes, para realçar o papel que as mulheres sempre tiveram no cinema”.
A “escola de cinema” Corman e o “brilhante” CameronLicenciada em Artes pela Universidade de Stanford, Hurd deu os primeiros passos na indústria ainda no final dos anos 1970, mentorada por pioneiras como Debra Hill, produtora de género e co-criadora com John Carpenter da franquia de terror Halloween. Depois, no começo da década seguinte, viu os seus talentos postos aos serviços de um homem que foi uma autêntica “escola de cinema” para muitos dos seus contemporâneos. “Fui contratada pelo Roger Corman como assistente executiva, alguém que, como eu, adorava ficção científica, cinema de género, bandas desenhadas, e acreditava que as mulheres deviam produzir. Foi ele que me empurrou para o mundo, que me disse que era capaz de produzir muito antes de eu própria achar que conseguia”.
“Rei da série B”, a produtora de Corman foi responsável por, nos anos 60 e 70, dar as primeiras oportunidades a muitos nomes que se viriam a tornar titãs da indústria: Francis Ford Coppola, Martin Scorsese, Peter Bogdanovich, Ron Howard, entre outros, realizaram os seus primeiros filmes – regra geral produções de baixo orçamento e géneros sensacionalistas – para o produtor, que pela sua influência nesta geração ficou conhecido como uma espécie de “padrinho” da Nova Hollywood.
Também Gale Anne Hurd atribui a Corman o mérito de ter aprendido algumas das lições mais valiosas para se ter sucesso na produção. “A coisa mais importante é ter conhecimento sobre todos os aspetos de um filme, da rodagem ao marketing e à distribuição. Tive sorte em trabalhar com o Roger Corman, porque pude trabalhar em todas essas áreas: escrita e desenvolvimento da história, casting, escolha de locais de rodagem, fui chefe de marketing, fiz pós-produção… Uma pessoa não se pode chamar a si mesma ‘produtora de cinema’ sem ter conhecimento em primeira mão por todas essas vertentes, sem ter o trabalho de casa feito”.

▲ A atriz Linda Hamilton, que interpreta Sarah Connor, e a produtora Gale Anne Hurd, na rodagem do primeiro "Exterminador Implacável"
Já depois de ter passado no “exame”, estabeleceu a sua própria produtora, a Pacific Western. O primeiro projeto que abraçou tinha, à época, cunho de série B, nascido literalmente de um sonho fantástico do seu realizador, um jovem James Cameron: um corpo metálico munido de uma faca, a persegui-lo enquanto fugia de uma explosão.
“Ao tentar arranjar financiamento para o Exterminador Implacável, percebi que era quase impossível”, recorda a produtora. Uma produção modesta à escala americana, o filme acabaria orçado em 4 milhões de dólares, divididos entre a produtora de Hurd, a distribuidora Orion Pictures, a televisão HBO e dinheiro europeu. Se hoje o filme que lançou Arnold Schwarzenegger para o estrelato mundial é considerado um clássico, a verdade é que na altura as suas raízes low-brow e de ficção científica, não eram vistas com bons olhos pelos financiadores do projeto.
A verdade é que o filme lançou também a carreira de Hurd enquanto uma das maiores produtoras de blockbusters nas décadas que se seguiram. Menos reconhecida é a sua faceta de co-argumentista do filme de Cameron – com quem foi casada de 1984 a 89 (ainda hoje se refere ao ex-companheiro como “Jim”) –, mesmo que seja a própria a menorizar a sua colaboração. “Quando trabalhamos com alguém tão brilhante como o Jim Cameron, a nossa contribuição resume-se a darmos notas e ajudar a ideia a florescer. De resto, com alguém tão talentoso como o Jim, é sair da frente e deixá-lo fazer o que sabe. Mas poucos o são.”
Hollywood entre a sobrevivência e o progressoParte do lastro cultural desse primeiro Exterminador reside numa espécie de permanente ansiedade do futuro – a distopia de uma sublevação de máquinas criadas por mãos humanas ganha novo fôlego a cada avanço tecnológico, e tem atingido o seu pico em anos recentes, com os avanços na indústria da inteligência artificial. Gale Anne Hurd reconhece essa dimensão premonitória, cada vez mais presente no imaginário coletivo. “Estávamos a falar disso em 1982! Sempre achámos que tínhamos escrito um filme para servir de lição sobre o que podia acontecer, sobre o lado negro da tecnologia. Na minha humilde opinião estamos nesse ponto, e não acho que os alarmes estejam a soar com força suficiente.”
“Recentemente estive num painel de debate com o líder de uma grande agência de talentos. Quando lhe perguntaram sobre o porquê de não haver mais mulheres a realizar grandes produções, a resposta foi ‘porque não querem’. Respondi-lhe: ‘isso é muito interessante, porque trabalhei com três clientes tuas e todas elas adorariam ter a oportunidade’.”
O impacto do filme é de tal ordem que, conta a produtora, chega até aos mais altos corredores do poder. “Noutro projeto que fiz há alguns anos, tive oportunidade de ir ao Pentágono, conhecer algumas figuras… ao entrar nos escritórios, não queria acreditar na quantidade de pósteres do Exterminador Implacável pendurados nas paredes. (…) Pessoas cujos trabalhos dependem de antever o futuro percebem a importância da ficção científica. E acho que os autores de ficção científica, os escritores em particular, são subvalorizados no que toca às observações que fazem sobre as coisas que nos deviam preocupar.”
As rápidas mudanças que a sociedade enfrenta têm também impacto na indústria do entretenimento, diz. “Como é que alguém pode estar otimista quanto ao futuro?”, questiona quem anda na indústria há tempo suficiente para a ter visto mudar vezes sem conta. Ainda assim, o cenário atual é diferente, reflete uma verdadeira “crise existencial” em Hollywood.
“Há cada vez menos financiadores para os filmes, menos distribuidores, menos salas… As próprias alterações climáticas que afetam o mundo inteiro. Basta pensar numa coisa como os fogos em Los Angeles, onde muitos amigos meus perderam as suas casas. (…) Depois, claro, há a inteligência artificial, que plagia o nosso trabalho sem qualquer compensação. Estamos a treinar os nossos substitutos”, lamenta.
Outros pontos de pressão, como a polarização política da sociedade na sociedade norte-americana – “porque é que tudo é woke ou é MAGA? Não podemos simplesmente apreciar a arte e os artistas?”, lamenta – são diagnosticados por Hurd. Contudo, uma área onde a produtora assume a sua discordância é na noção de que o grande público não está interessado em projetos originais no cinema, noção defendida por quem vê no topo dos rankings de bilheteira um rol infindável de sequelas, remakes e franquias de várias décadas.

▲ Com o realizador James Cameron, durante a promoção de "Aliens", o segundo filme da saga iniciada por Ridley Scott
“A razão pela qual há tantas sequelas e remakes tem a ver com o facto de serem as propriedades mais fáceis de ‘vender’ aos financiadores como sendo de baixo risco, porque já há um conhecimento prévio do público”, sustenta Hurd. Uma aversão ao risco que não é necessariamente gerada pela vontade dos espectadores, mas sim por lógicas de mercado externas, e que as pessoas vão dando sinais de rejeitar. “Estamos a assistir a uma fadiga contra esta ‘dieta regular’ dos mesmos filmes, as pessoas querem coisas novas” diz a produtora. Aqui, novamente o cinema de género — com o terror em particular — assume a dianteira.
“Ainda recentemente tivemos o exemplo de Hora do Desaparecimento, um conteúdo original e que está a ser um sucesso e a surpreender as pessoas. Estamos a ver companhias como a A24, focadas em financiar projetos de autor, porque há cada vez mais público a ir ao cinema ver filmes de cineastas específicos. É muito importante lembrarmo-nos que temos de promover e financiar a próxima geração de realizadores. E isso torna-se mais difícil quando só se vai atrás de ‘apostas seguras’”, defende.
“Sei que ainda há um estigma contra as mulheres em Hollywood”Ao mesmo tempo, cultiva-se a esperança de que essa tendência, aliada aos vários movimentos nos últimos anos a favor pela igualdade de género na indústria, possam sinalizar uma maior abertura à realização e produção no feminino. Gale Anne Hurd reconhece que houve progressos se comparando com os anos 70 e 80, os do seu próprio começo, mas diz que ainda há “um longo caminho a percorrer”. E garante que fala com conhecimento de causa.
“Na maneira como as coisas funcionam na indústria americana, normalmente o produtor entra a bordo de um projeto antes do realizador. E uma das primeiras coisas que o produtor faz é reunir com os financiadores para discutir nomes de possíveis realizadores. Normalmente, a minha lista de nomes inclui várias mulheres… e o que é interessante é a resistência que encontro quase sempre a esses nomes. Não preciso de achar, sei que ainda há um estigma contra as mulheres em Hollywood porque já o vi.”
"Estamos a ver companhias como a A24, focadas em financiar projetos de autor, porque há cada vez mais público a ir ao cinema ver filmes de cineastas específicos. É muito importante lembrarmo-nos que temos de promover e financiar a próxima geração de realizadores. E isso torna-se mais difícil quando só se vai atrás de ‘apostas seguras’.”
De onde continua então a vir o preconceito? Hurd sugere que tudo parte mais uma vez do estigma de que as mulheres só estão interessadas em realizar certos tipos de filmes, presente não só dos estúdios como por vezes nos próprios agentes destas cineastas, e apresenta um caso concreto. “Recentemente estive num painel de debate com o líder de uma grande agência de talentos. Quando lhe perguntaram sobre o porquê de não haver mais mulheres a realizar grandes produções, a resposta foi ‘porque não querem’. Respondi-lhe: ‘isso é muito interessante, porque trabalhei com três clientes tuas e todas elas adorariam ter a oportunidade’.”
Nem tudo é mau, apesar disso. Sucessos de bilheteira, como o recente Barbie, de Greta Gerwig – cineasta que de resto se prepara para assinar a próxima adaptação d’As Crónicas de Nárnia para a Netflix – vão contribuindo para abrir a porta, pouco a pouco. Sinais positivos surgem também dos próprios pares da indústria, como o facto do DGA, o Sindicato de Realizadores, ser presidido atualmente por uma mulher, a cineasta Lesli Linka Glatter. “Adoro o facto de os colegas dela a terem eleito duas vezes para o cargo, e tem corrido o mundo a promover o trabalho dos realizadores, e em particular das mulheres-realizadoras.”
O trabalho agora passa, acima de tudo, por promover e celebrar os esforços das mulheres no cinema. Esforços que, diz-nos mais uma vez Hurd, sempre existiram. “A diferença é que não lhes é dado destaque suficiente. Por isso é que para mim prémios como este no MOTELX são tão importantes. Ajudam a abrir a porta e colocam um holofote na importância do trabalho do produtor, o que para nós é muito agradável.”
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